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Os vários mitos do Superman na Era Moderna dos super-heróis

Por Diego Figueira


Parte 1 - Introdução

Primeiro super-herói a ser publicado nas histórias em quadrinhos, o Superman tem uma importância muito grande por ter inaugurado tanto um gênero de histórias (os quadrinhos de super-heróis) quanto um novo suporte para as suas publicações, as revistas com histórias de várias páginas e inéditas, dando início a todo mercado de quadrinhos nos EUA como conhecemos hoje.

Ao longo de quase setenta anos de publicação ininterrupta, o personagem passou por vários acréscimos e transformações, acompanhando as mudanças estéticas e ideológicas dos quadrinhos e da sociedade neste período. Por várias vezes, as pessoas responsáveis por suas histórias, roteirista, desenhistas e editores, propuseram reformulações, dando um novo começo para o personagem. Assim, poderia-se eliminar o peso de tantas histórias já publicadas e deixava o caminho livre para a conquista de novos leitores.

Para aqueles que hoje em dia, além de ler as revistas mensalmente, guardam algum tipo de informação sobre o passado do personagem e dos quadrinhos como um todo, é fácil fazer distinção entre o Superman da Era de Ouro dos quadrinhos (a década de 1940), a Era de Prata (segunda metade da década de 50), a Era de Bronze (a década de 70) e a Era Moderna (de meados dos anos 80 até hoje). Tais versões do Homem de Aço apresentam origens, habilidades e personalidades bem diferentes, a ponto de terem sido tratadas como personagens distintos pelos próprios autores, editores e leitores.

Nesta pesquisa, realizada entre agosto de 2005 e julho de 2006, buscamos analisar a evolução do personagem durante a chamada Era Moderna dos quadrinhos de super-heróis, partindo da reformulação do Superman comandada pelo roteirista e desenhista britânico-canadense John Byne, um dos grandes nomes dos quadrinhos dos anos 80, ao lado de Frank Miller (Demolidor, Batman: O Cavaleiro das Trevas, Sin City), Chris Claremont (X-Men), Alan Moore (Watchmen, V de Vingança), Geroge Pérez (Novos Titãs, Mulher-Maravilha) e Walt Simonson (Thor). Esta reformulação está relacionada com um grande evento editorial envolvendo todos os personagens da editora DC Comics, detentora dos direitos de personagens como Superman, Batman, Mulher-Maravilha, Lanterna Verde, Flash, Aquaman, Caçador de Marte, Gavião Negro, Capitão Marvel (Shazam), a Liga da Justiça, os Novos Titãs. Para comemorar o 50º aniversário da editora, seus editores aproveitaram para dar um novo começo para todos os seus personagens.

Depois de tanto anos de publicação, muitos acréscimos tornavam a compreensão de algumas histórias difícil, principalmente quando se tratava de uma referência a outra história antiga ou o encontro de dois personagens normalmente escritos por pessoas diferentes. Isto não permitia que a DC competisse em pé de igualdade com sua principal concorrente, a Marvel Comics, casa de Homem-Aranha, Quarteto Fantástico, Hulk, Demoldior, Capitão América, Homem-de-Ferro, X-Men e Vingadores. Desde sua estréia em 1963, a Marvel se orgulhava de todos os seus personagens comporem um mesmo universo coerente, onde todos habitavam e tinha consciência da existência uns dos outros. Este recurso se tornou um elemento de verossimilhança muito apreciado pela crítica de quadrinhos que começou a surgir poucos anos depois e tinha um apelo especial entre os fãs, que se sentiam mais próximos de heróis que pareciam "vivos" habitando Nova Iorque.

Assim, a DC decidiu eliminar seu problema de múltiplas realidades e criar definitivamente seu próprio universo de personagens. Para isso, a dupla de autores Marv Wolfman (roteiro) e George Pérez (desenhos) criou a maxissérie Crise nas Infinitas Terras. Mais do que uma explicação criativa para o problema das realidades alternativas da DC, eles criaram uma grande tragédia em cima disso, mostrando profundo respeito mesmo por aqueles personagens que não sobreviveriam na nova continuidade e lhes deram finais realmente dignos de serem lembrados pra sempre.

A Crise (como é chamada desde então) foi o primeiro e, segundo muitos fãs e críticos, o maior e melhor evento editorial deste tipo nos quadrinhos, por unir com grande competência uma necessidade editorial a uma solução artística.

Depois do final desta saga, cada personagem "sobrevivente" seria um personagem novo, como que recém-criado, sob os cuidados de uma nova equipe de criadores. Foi assim que o Superman chegou às mãos de Byrne, que já era um astro na época, e Wolfman, o próprio autor de Crise, que ficou com uma das três revistas mensais do Homem de Aço.

Assim, o Superman de Byrne e Wolfman é, a princípio, uma tabula rasa com a proposta de resgatar os elementos que os dois autores consideravam mais essenciais ao personagem em seus princípios. Como esta decisão polêmica não pode ser unânime, uma vez que vários autores se sucedem na criação de histórias para um personagem ao longo dos anos, em determinados momentos, autores que pensavam diferente de Byrne escreveram histórias do Superman e de alguma forma impuseram sua visão, desconstruindo aos poucos a completude dada por ele.

Ao longo do tempo, essa sucessão de abordagens e estilos definem um trajetória tortuosa na evolução do personagem que se torna uma questão muito interessante. Com tantas mudanças, mandos e desmandos, como o personagem pode continuar existindo com um mínimo grau de identidade? Ainda mais que as histórias em quadrinhos desde então valorizam muito uma estrutura seriada, com uma continuidade entre títulos que faz que obrigatoriamente os fatos de uma história sejam levados em conta nas histórias seguintes.

Este movimento de evolução é o que pretendemos observar, descrever e analisar. Para isso, fazemos uso da teoria da linguagem elaborada por Mikhail Bakhtin, especialmente nos livros Marxismo e Filosofia da Linguagem e Estética da Criação Verbal. Com essa bagagem teórica, pretendemos dar conta do caráter social e dialógico da produção de sentido nas esferas da atividade humana, no caso, a produção e a leitura de histórias em quadrinhos.

Nesta pesquisa, damos continuidade ao trabalho de análise das histórias em quadrinhos na sua relação com o leitor mais assíduo, o colecionador ou fanboy. Anteriormente mostramos como existe todo um universo de práticas discursivas em torno das revistas em quadrinhos que dão uma dimensão diferente ao discurso veiculado nestas revistas. Estes outros discursos paralelos vêm formando a base de uma consciência crítica auto-reflexiva dos quadrinhos que tem dado um status de tradição às obras do passado, de forma que a inter-relação entre obras novas e antigas torna este sistema de obras mais sofisticado e interessante como fenômeno cultual.

Com este trabalho focado em apenas um personagem de relevância para os quadrinhos, pretendemos aprofundar nossa compreensão sobre esta rede de relações dialógicas entre obras, autores, editores e leitores e apreender que identidade os quadrinhos vêm construindo para si.

Leia a Parte 1

 



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