A garotinha ruiva
Existe uma para cada um de nós*
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A importância de Charles M. Schulz para o mundo ainda está para ser mensurada e, sinceramente, me parece improvável que se possa medir o efeito de pílulas de melancolia distribuídas diariamente para milhões de pessoas ao redor do mundo pelos jornais. Ou ainda exibidas nas noites de domingo do SBT, antes do programa do Trem da Alegria. Essa análise tem sido realizada por infindáveis artigos e teses em disciplinas diversas (1). Por hoje, vamos nos ater à garotinha ruiva.
A garotinha ruiva é o amor de Charlie Brown (2) e uma das personagens mais marcantes de toda a série Peanuts. Apesar disso, teve uma única aparição, no especial de TV "It's Your First Kiss, Charlie Brown", de 1977 - ainda por cima, contra a vontade de Schulz. Nesse especial, ela ganha um nome – Heather - e uma personificação. Contudo, na tira de jornal, a garotinha ruiva nunca apareceu. É apenas mencionada, vista e admirada de longe por Charlie Brown, que fica atrás de uma mureta e comenta com Linus: “Não tem nome: é a garotinha ruiva”.
As conseqüências de um amor distante, idílico e enigmático podem ser decifradas pelo leitor sem esforço. É o medo de "chegar", mais uma frustração da vasta coleção que Charlie Brown montou a partir de sentimentos ocidentais. Os sofrimentos do jovem Charlie são muito próximos dos de um certo Werther.
Ocultar personagens é uma prática comum em Peanuts (referência ao apelido de Charlie Brown; no Brasil, Minduin). Os adultos são retratados apenas por suas pernas, como se seu mundo fosse alto, inalcançável. Esse recurso, já utilizado em animações como Tom & Jerry, revigora-se com a inclusão de uma fala enrolada, incompreensível, na versão animada. A imagem é semelhante à do Deus hebraico, que não pode ser visto por humanos em sua grandiosidade e usa o anjo Metatron para intermediar a comunicação. Mas, para Schulz, os adultos não são inatingíveis, apenas enfadonhos e desinteressantes. Quem cresce não vale a pena se não forem vistos pelos olhos dos pequenos intermediários.
Pode-se pensar que, se os personagens entendem a voz dos adultos e nós não, nós somos diferentes deles. Os adultos emitem uma mensagem que é decodificada pelos personagens de Schulz, que retransmitem a nós de uma forma que podemos compreender. Schulz esboça, enfim, uma parábola sobre a função da arte para Aristóteles. A arte é simulação e imitação, e os personagens nos imitam e simplificam para que possamos depreender como é a vida dos adultos. De certa forma, um leitor dos Peanuts nunca será realmente um adulto (naquele sentido pai de família sério e responsável do american way of life). Schulz é nosso tradutor (3).
Como todo grande ficcionista norte-americano, Schulz parece saber que a maturidade é falsa. Mas, diferentemente dos colegas que escrevem grandes romances para quebrar os cristais da sala, Schulz não precisa mostrar o mundo dos adultos. No fim das contas, é porque ele não existe. O mesmo acontece com sua garotinha ruiva invisível. O amor perfeito e idílico, inalcançável, não é uma realidade para Schulz. Nem para nós, criados à sua sombra.
NOTAS PERTINENTES: (*) Uma primeira versão deste artigo foi publicada em uma série de textos que analisaram personagens de quadrinhos no extinto site Fraude.org. O singelo subtítulo é do editor do site, Bruno Galera, hoje autor do blog Big Muff (www.big-muff.org/blog).
(1) Do jeito que vai, todo o esforço de Schulz parece invalidado aqui no Brasil por uma banda de rock que, ao se propôr herdeira de Charlie Brown, faz-se de filho rebelde e lamentavelmente vai contra tudo o que o pai construiu. Também vale recomendar aqui a bela leitura que os psicanalistas Mario e Diana Corso fazem dos personagens - e da garotinha ruiva em si - no livro Fadas no Divã, lançado no começo deste ano pela editora Artmed.
(2) Alguns chamariam esse amor de "platônico", mas hoje sabe-se que o amor de Platão, tal qual deve caber a um bom grego, jamais seria dirigido a garotinhas ruivas. Por que vocês acham que essa grandiosa civilização acabou?
(3) Mas convém lembrar que “tradutor” e “traidor” são palavras com a mesma raiz.