Surfista Prateado: Parábola

Para muitos, super-heróis de histórias em quadrinhos são o equivalente aos deuses e heróis das mitologias clássicas. Especialmente entre os leitores mais assíduos já se tornou comum referir-se ao conjunto de personagens e acontecimentos de uma série como sendo a “mitologia” de um desses super-heróis.

Stan Lee fez com que a maioria dos personagens do Universo Marvel escapassem deste estigma mostrando-os sob uma ótica mais voltada para o cotidiano, de modo que cada herói nos tocasse por sua individualidade e verossimilhança. No entanto, Lee não deixou de abordar temas e sentimentos mais filosóficos. Elegeu para isso o Surfista Prateado, o trágico coadjuvante que criou para o Quarteto Fantástico e que logo se mostrou uma grande entrada para a experimentação de Lee com novas temáticas.

 

O Surfista é a uma das melhores representações do sentimento de solidão. Ele tinha uma vida feliz em seu planeta até que Galactus, o devorador de mundos, chegou para destruir todos aqueles que ele amava. Para evitar isso Norrin Radd ofereceu-se para ser eternamente servo do gigante devorador de mundos caso ele poupa-se o planeta Zen-la. Assim, tranformado em Surfista Prateado ele passa a viajar pelo comos afastado de sua amada Shalla Bal.

Poderia se pensar que como arauto de Galactus ele seria um amigo do gigante, mas Galactus é um ser desinteressado de qualquer contato devido sua singularidade. Sendo ele uma entidade única no universo em sua concepção, ninguém pode entender o ele sente, sendo, então, inútil conversar com qualquer um. Com um companheiro de viagens como esse, resta ao Norrin surfar solitário pelo espaço encontrando novos mundo para saciar a fome de seu mestre.

 

Dessa forma, Stan Lee pode fazer desse o seu personagem mais reflexivo e um dos mais trágicos. O sentimento de solidão do Surfista é diferente do daqueles que perderam seus familiares em uma tragédia, como o Batman por exemplo. Norrin sofre muito mais por saber que seu mundo e sua amada ainda estão vivos, mas ele não pode voltar a vê-los. Os autores também puderam refletir nesse herói o espírito rebelde e libertário do final dos anos 60 e começo dos 70. O Surfista viajando pelo espaço pode ser visto como uma metáfora àqueles que, seguindo o espírito representado em Zen e a arte de manutenção de motocicletas (livro de Robert Persig) ou Easy Rider (o filme Sem Destino), viajavam em suas motos Harley-Daivison pelas highways norte-americas.

Na graphic novel Parábola, desenhada pelo gênio Moebius, o Surfista é destacado da cronologia do Universo Marvel e levado para um futuro não tão distante onde a atmosfera mítica pode voltar à narrativa. Ao invés do cenário bem determinado como a Nova Iorque em que habitam os heróis da Marvel, esta história está ambientada em um lugar muito mais universal, referente à “humanidade” como um todo, apesar de algumas referências à Casa Branca e outros locais.

O domínio de Lee com as palavras e a elaboração das seqüências aproxima seus quadrinhos da poesia. Para muitos teóricos a linguagem dos quadrinhos possui um poder de síntese para expressar uma idéia que a torna mais “eficiente” do que a linguagem em prosa. Porém nem sempre uma expressão seca e direta pode ser considerada artística, pois para isso é preciso existir algo de subjetivo, metafórico.

Não é este o tipo de concisão que Stan Lee demonstra em suas obras, especialmente nesta. Em seus diálogos existe uma concisão que não é comum na prosa, mas está mais próxima do discurso poético, livre de rodeios e frases desnecessárias. Sem precisar fazer descrições de cenários e estados de espírito das personagens, sobra espaço para que eles deixem fluir suas vozes no texto da obra. Tudo com a precisão de Lee em expressar os sentimentos mais profundos de todos esses personagens com apenas poucos balões.

Para que isso possa acontecer é preciso que os desenhos possam expressar tudo o que não seja exatamente o diálogo das personagens. Cenários, descrição de personagens, os acontecimentos principais e do pano de fundo, tudo está diante dos olhos do leitor pelo estilo fantástico de Moebius.

Uma evidência clara da sintonia entre a arte e o texto foi a escolha do título. Parábola é uma pequena história com uma lição por se aprender. Ao mesmo tempo representa o movimento de um objeto lançado no espaço e que segue em frente caindo aos pouco atraído pela gravidade. A trajetória assim seguida é matemateticamente conhecida como parábola, um tipo de curva que o desenhista usa inúmeras vezes para demarcar o movimento do vôo do Surfista em sua prancha.

A combinação de tudo isso é um confronte de valores universais expressos por todos os personagens, inclusive o vilão Galactus. Ao longo de toda história são feitas diversas perguntas que se referem às dúvidas mais essenciais da humanidade – e aqui esse conceito se estende aos seres alienígenas que protagonizam a obra. Ao final, o deus e o herói podem ser pensados como mito, mas não deixam de ter sua função questionada. Pois os mitos servem para ensinar algo aos homens sobre seu cotidiano.

Lee e Moebius, sabendo que não estavam criando um mito, mas apenas partindo de um gênero de narrativo para outro, inserem algo que não se vê nas narrativas folclóricas. Nesta gráfic novel vemos os humanos se perguntando o que têm a aprender com o que vivenciaram.

Dessa forma Surfista Prateado: Parábola é uma leitura universal, atemporal e essencial. Apesar de ser um retrato de um sentimento de uma época o seu questionamento sobre a humanidade e seus sentimentos se aplicam a qualquer momento. Sua arte realista, expressiva, que consegue usar diversas construções geométricas e representar as sutilezas das emoções e dos movimentos das cenas, representa o potencial e a poética do estilo artístico dos europeus, que, mesmo sendo um traço característico de um grupo de artistas influenciou deiversas outras escolas de desenho e é compreensível e admirado em todo o globo.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

 

 

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