Dupla Identidade

Há alguns meses, a TV Cultura trouxe para a sua programação uma série de produções da rede BBC de Londes, resultado de uma pareceria entre as duas redes públicas de televisão. A melhor delas, sem dúvida, a série Dupla Identida (Spooks, no original). Esta produção vencedora do prêmio Bafta de Melhor Série Dramática em 2003 (o equivalente britânico ao Emmy) conquistou fãs em vários países por combinar espionagem internacional com suspense e dramas pessoais com uma sensibilidade bem diferente das produções norte-americanas.

A série é centrada nos membros do MI5, conhecido pelos colegas apenas como “cinco”, um serviço de segurança clandestino do governo britânico. Eles enfrentam o crime organizado, as atividades terroristas, ataques a embaixadas, a proliferação de armas e de anarquistas, sem mencionar os conflitos e lutas de poder dentro do escritório. Porém, a ação não é nada espalhafatosa nem os conflitos são os clichês tão manjados das produções dos EUA.

Ao que parece, os ingleses (pelo menos os roteiristas e produtores de Dupla Identidade) conhecem bem o significado da expressão “serviço secreto” e agem sempre com sutileza e discrição. Não há equipamentos que parecem saídos de filmes de ficção científica nem cenas mirabolantes de perseguição ou trocas de tiros. Muito pelo contrário, os agentes do MI5 aparecem usando tecnologia totalmente verossímil (aliás, sem o fetiche do merchandising, que nos oferece closes desnecessários dos modelos usados na cena).

Quanto a isso, existe até uma explicação dentro contexto da série para as diferenças entre os agentes do serviço secreto britânico e os de demais países, especialmente os da CIA. Os ingleses são menosprezados por estarem numa situação desconfortável por uma série de razões, como o menor poder tecnológico e até mesmo o fato de seus agentes não estarem autorizados a eliminar indivíduos perigosos à segurança nacional.

A maioria dos casos investigados pelo MI5 no seriado são baseados em situações reais da política e da diplomacia internacional. Ameaças terroristas, crises do sistema de segurança, falsas identidades, complôs e relações mais ou menos tensas com outras cúpulas de poder são conteúdos fixos de cada um dos episódios. Uma visita de Bush à Inglaterra é assunto de um episódio, assim como um ataque ao primeiro ministro e ataques ao metrô londrino.

Sem fixar um alvo ideológico em nenhum grupo, a série apresenta conflitos com países do Oriente Médio, leste europeu, América Central e países que são potências econômicas mundiais. Não existem estereótipos, porque em geral os agentes se deparam com mais de um personagem pertencente a estes grupos, de modo que existem sempre vários pontos de vista sobre o conflito que não tomados como a versão “oficial” dos mocinhos do seriado.

Além disso, faz muitas referências a acontecimentos históricos, como missões de guerra e espionagem conhecidas na Inglaterra. Na maioria das vezes, estes eventos servem de mote para tramas de conflito entre os próprios agentes do MI5, novos e antigos, que têm sua vida pessoal afetada pelo serviço secreto. Crises de consciência, desilusões com a pátria, divergências éticas e ideológicas são abordados indo além das disputas pelo poder pura e simplesmente.

A narrativa da série é extremamente tensa e angustiante, seja com relação às ações de grupos secretos ou ao que pode acontecer aos personagens, sejam principais ou coadjuvantes. Às vezes, casos ficam sem solução e o final feliz é destruído por um imprevisto trágico no momento decisivo, como no episódio em que um jovem islâmico é posto como agente infiltrada num grupo de fundamentalistas e é convencido a se tornar um homem-bomba. Um ex-agente argelino, Ibhn Khaldun (interpretado pelo ótimo Alexander Siddig, de Cruzada) parece estar convencendo o garoto a desistir, num debate muito bem escrito sobre sua causa religiosa, mas no instante seguinte o garoto detona a bomba. A mensagem de Khaldun foi transmitida belamente para o espectador, mas os roteiristas fizeram questão de lembra-lo no final de que esta questão está muito longe de ser resolvida, para a tristeza de muitos.

Não raro, os episódios acabam de forma abrupta e nem mesmo créditos são mostrados. Por isso, muitos deles são muito mais intensos, pois deixam o espectador pasmo diante da televisão. O mais angustiante de todos foi o episódio em que o agente Tom Quinn, o principal agente de campo do MI5, toma posse de um laptop de um grupo terrorista, mas na verdade o equipamento era uma pista falsa e tinha uma bomba embutida. Tom levou a máquina para sua casa, para perto de sua mulher e filha, e a bomba descobre que a bomba está para explodir quando elas estão sozinhas. O cronômetro zera e então... fade out, o episódio acaba.

A TV Cultura transmitiu, por enquanto, somente a primeira e a segunda temporada, cujo último episódio foi apresentado na última quinta-feira. Em apenas um episódio, toda ordem do grupo foi posta de ponta cabeça. Tom Quinn se tornou vítima de uma conspiração que colocou seus próprios colegas contra ele e o incriminou pelo assassinato do primeiro ministro britânico. No final, fugindo desesperadamente, Tom some no meio do mar, sem que saibamos qual o seu destino.

Seria bom ver a próxima temporada por aqui em tv aberta (a série também é exibida pelo canal por assinatura People & Arts). É uma maneira completamente diferente de narrar uma história de espionagem com uma sensibilidade mais atenta para os personagens e a qualidade do elenco inglês também favorece muito o resultado final. Além disso, ajuda a resgatar a qualidade dos seriados na tv aberta, que está esquecida há um bom tempo.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

 

 

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