Romance sem palavras

Carlos Heitor Cony, mesmo tendo passado um bom tempo sem escrever seus romances, é um dos mais conceituados escritores ainda vivos no Brasil. A ponto de esse período de silêncio literário ser chamado pela crítica como “Os anos perdidos da literatura brasileira”. Atualmente escrevendo diariamente na Folha de S. Paulo, seu último romance foi A tarde de sua ausência, publicado em 2004.

A temática de seus livros se divide entre o que ele chama de “dissabores da classe média” (Por exemplo: A casa do poeta trágico, Quase Memória, Informação ao Crucificado e A Tarde de usa ausência) e aqueles que se relacionam mais diretamente com o período da ditadura militar (Pilatos, O tijolo de segurança, O Ato e o Fato e, o que trataremos aqui, Romance sem palavras).

Romance sem palavras conta a história de Beto, Jorge Marcos e Iracema, antigos colegas da luta contra a ditadura que hoje vivem em meio à classe média do Rio Janeiro. Na apresentação, o autor aponta para o emprego que fez do termo romance no título. Não se trata de romance como gênero literário, mas de “caso”, relacionamento. É, portanto, o relato de uma relação construída no implícito, no não-dito.

A história narrada por Beto se sustenta na ilusão de um triângulo amoroso entre eles, que começa com o envolvimento entre Beto e Iracema, que faz com que ele se mantenha no movimento revolucionário. Até que Iracema volta-se para Jorge Marcos, que abandona a batina para viver uma paixão.

Ao longo dos anos, os três desenvolveram uma amizade que ia muito além do passado que tinham em comum, e se estendia para o futuro que haviam planejado para si. “Criamos um universo a três que nos bastava. E nos redimia da loucura do sonho e de chatice da realidade”. Dessa contradição entre passado, presente e futuro derivam os conflitos de todos eles, compartilhados num diálogo sempre silencioso, numa sinfonia sem palavras.

Com base nesta situação, a narrativa se divide em três tempos e as memórias de Beto fazem referência à transformação dos três após o período de lutas. É justamente a precisão de Cony em intercalar estes três tempos que mais chama a atenção no livro. Mais do que ordenar os fatos, as palavras fazem o gancho adequado entre cada capítulo.

Porém, conforme o passado é revirado em uma série de conversas de Jorge e Beto a respeito de um livro que Iracema está escrevendo com suas memórias, algo aponta para um ponto fraco nesta realidade particular que conforta os três. Assim, aos poucos esse triângulo amoroso se revela com algo diferente, envolvendo mais alguém que Jorge e Beto não esperavam.

Sem abandonar o terreno do não-dito, o narrador Beto segue refletindo sobre os fatos ao longo dos anos e procurando entender o presente. Quando seu universo em comum se desfaz de forma irremediável, cada toma um rumo diferente com uma resposta particular para tudo que aconteceu. Beto, diante da descoberta que Jorge Marcos não alcançou, admite que prefere seguir imaginando que Iracema o amava e assim, sofrer menos.

A relevância desse livro, assim como outros do autor, não está apenas no seu valor literário e na sua excelente estrutura narativa. Ele entra em uma categoria que já analisamos aqui (quando falamos da HQ Estrada para Perdição) em que podemos observar um momento histórico através de um olhar privilegiado de um personagem que nos conduzirá por uma óptica peculiar. Caso alguém queria levantar a questão do valor histórico desse tipo de leitura, vale lembrar que Cony viveu o período militarista brasileiro e partes de sua história podem ser encontradas nos próprios personagens. Por exemplo, ele foi seminarista e largou a igreja antes de assumir a batina e era jornalista quando os militares deram seu golpe, sendo, inclusive, preso por um tempo, apesar de não ser militante político.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

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