A importância da cronologia
As histórias em quadrinhos de super-heróis são constantemente chamadas de “mitologia moderna”, não apenas por terem personagens poderosos vivendo aventuras fantásticas, mas porque representaram de forma simples, mas grandiosa, diversos temas contemporâneos quando ainda eram novidade. Como um mercado que cresceu absurdamente ao longo dos anos, as revistas em quadrinhos conquistaram gerações de leitores que se deliciavam com seus heróis.
Um aspecto importante das mitologias é a forma como elas são assimiladas pela sociedade, através de um conhecimento popular, transmitido quase espontaneamente de pessoa para pessoa, quase sempre dos meus velhos para os mais novos. Diversas pesquisas já apontaram que heróis como Superman, Batman e Homem-Aranha são reconhecidos pelas pessoas da mesma forma que personagens tradicionais e de autoria desconhecida como Rei Arthur, Robin Hood e Papai Noel. Para muitos, é como se as histórias destes heróis existissem há muito tempo no imaginário popular.
Mas existem ainda pessoas que levam mais a sério essa idéia de mitologia dos super-heróis e preferem ser fiéis às narrativas que são publicadas nos gibis. Para este tipo de leitor, que guarda na memória cada pormenor da trajetória de não um, mas vários heróis, os gibis são verdadeiras epopéias modernas construídas em infinitos capítulos mensais.
Quando criaram as bases do Universo Marvel no começo dos anos 60, Stan Lee e Jack Kirby já perceberam que além de fazer dos gibis uma novela para garotos, seria uma boa idéia fazer com que seus personagens, mesmo de revistas diferentes, convivessem num mesmo cenário mais rico e dinâmico. Assim os leitores ficariam ainda mais ligados nas revistas da editora e histórias ainda mais grandiosas poderiam ser contadas com o encontro dos heróis.
Difícil dizer se as revistas de super-heróis são interligadas porque existem leitores fanáticos ou se esses leitores são assim porque a indústria interligou as revistas. É como a história do ovo e da galinha. O fato é que essa interligação entre as histórias de todos os personagens de uma editora em um “Universo” e a presença do colecionador como modelo de leitor ideal são dois pilares dos quadrinhos de super-heróis, como gênero de histórias e como indústria de entretenimento.
A cronologia, como é pomposamente chamada pelos fãs e pela crítica de quadrinhos, tornou-se então um valor muito apreciado nos quadrinhos de super-heróis. Especialmente por um personagem ter muitos autores com o passar dos anos, o respeito e bom uso da cronologia sempre foi uma maneira de julgar o trabalho dos novos responsáveis por uma revista.
É normal que muitos leitores procurem em outros gêneros o mesmo tipo de continuidade que existe para os super-heróis, sem perceber que ela existe por razões estéticas e comerciais muito específicas. Mas mesmo personagens de outros gêneros que são publicados ininterruptamente há décadas vivem sem cronologia – Tex, Asterix, Dick Tracy e Spirit são exemplos. Também não há sentido em falar da cronologia de uma saga fechada, como acontece com os mangás.
A cronologia está intimamente ligada com a idéia de Universo de heróis. Para que as relações derivadas da convivência entre os personagens tenham relevância para o cenário como um todo, é necessário que o histórico de seus encontros sejam levado em conta. Fazer com que um cenário tenha uma política e uma geografia mais verossímeis exige uma boa dose de história como pano de fundo, especialmente quando as sagas envolvem impérios intergaláticos, tropas de patrulheiros espaciais ou civilizações perdidas.
O conceito de cronologia também parece englobar não apenas os acontecimentos de universo ficcional dos quadrinhos, mas também as mudanças editoras sentidas “do lado de fora” pelo leitor. Tão importante quanto saber como foram os primeiros encontros do Batman como o Comissário Gordon é saber que eles foram definidos por Frank Miller na saga Ano Um e que ela faz de um contexto editorial específico, que foi a reformulação da DC depois de Crise nas Infinitas Terras, nos anos 80.
A cronologia torna possível acompanhar um certo desenvolvimento dos personagens, que passam a ter certa “liberdade” para amadurecer e mudar. Sem ela os leitores não veriam Robin se tornar Asa Noturna ou o Arqueiro Verde viver uma crise de meia-idade. Com novos idéias para usos da cronologia a DC estabeleceu um lugar de honra na história para a Sociedade da Justiça e a Marvel ofereceu uma visão catastrófica de futuro em Dias de um futuro de esquecido, saga que é revisitada até hoje.
Se não existisse uma cronologia “oficial” como ponto de referência também dificilmente existiriam histórias das linhas Elseworld e O que aconteceria se...?, que propõem versões alternativas de histórias conhecidas.
Ao mesmo tempo em que é um atrativo para o leitor, que pode crescer junto com seu herói, este recurso narrativo de passagem de tempo é uma armadilha, pois empurra o personagem para a velhice e um inevitável fim. Por isso tornaram-se comuns “acertos” na cronologia, sejam eles grandes ou pequenos. Com o tempo, surgiram grupos de fãs, autores e editores que divergiam sobre o peso da cronologia nos quadrinhos e aqueles que eram contra ela diziam que é mais importante ter uma boa história do que simplesmente uma história que se submete à cronologia.
Porém, há que se considerar que fazer um estardalhaço prometendo mudanças radicais num personagem para meses depois desconsiderar tudo é outra prática editorial que deixa leitores raivosos há anos e fortalece os argumentos dos defensores da cronologia.
Certamente não veremos o fim da cronologia nos quadrinhos tão cedo, já que boa parte dos truques dos roteiristas para surpreender o leitor se utilizam dela - o simples retorno de um personagem desaparecido levanta curiosidades sobre a cronologia. Mas é impossível negar que ela não tem mais o mesmo efeito que há vinte anos. Hoje, muitos roteiristas sentem-se mais limitados do que ajudados pela cronologia na hora de criar histórias interessantes.
Alguns personagens simplesmente não têm uma material antigo atrativo o suficiente para ser considerado de fato uma cronologia a ser seguida e precisaram ser reinventados em suas novas séries, como Luke Cage ou o Pantera Negra. Outros tem cronologias confusas, como a Legião dos Super-Heróis, Gavião Negro e a Supergirl. E há também aqueles para quem a cronologia, ainda que bem estruturada, torna-se um fardo, como para o Homem-Aranha.
Um dos grandes diferenciais que chamavam a atenção no Homem-Aranha quando ele surgiu era o fato dele ser ainda um adolescente, lidando com uma vida comum em casa, na escola e no trabalho enquanto mantinha sua vida de super-herói. A força da identidade secreta do herói foi justamente a causa dos seus problemas com a cronologia, pois os roteiristas mostraram vários momentos da sua vida pessoal que o levariam a se tornar um adulto.
Em algum momento de sua trajetória de publicação, ficou decidido que os primeiros quinze anos de revistas corresponderiam a mais ou menos os três primeiros anos de Peter como Homem-Aranha. Depois disso tudo passou a acontecer mais rápido, a faculdade, o casamento com Mary Jane, o convite para se tornar professor. No final da década de 90, Parker já era um homem, talvez beirando os trinta anos, com família constituída e tudo mais.
Sem uma das suas mais fortes características originais, o herói passou a dividir opiniões sobre como deveriam retratá-lo. Uma tentativa de solucionar a questão foi a criação da linha Ultimate, com novas histórias mostrando um Peter adolescente ambientadas no século XXI. Mesmo com o sucesso que a revista mantém até hoje, a dúvida ainda pairava sobre sua contraparte no universo tradicional da editora e assim surgiu a premissa da saga One More Day, que pretende fazer ajustes drásticos na cronologia do herói aracnídeo. Para o editor-chefe Joe Quesada, o fator de Peter ser casado prejudica as histórias e fazer dele um divorciado seria pior.
Qualquer alteração na cronologia de um personagem é um desafio imenso. A história não precisa ser apenas boa, mas também precisa passar na comparação com a versão anterior. Um bom exemplo foram a maioria das reformulações que a DC promoveu após Crise nas Infinitas Terras, que agradaram a maior parte do público graças ao grande esforço das equipes criativas. Quando a nova versão não agrada, os defensores fiéis da cronologia fazem coro para dizer como as mudanças não valem a pena.
Por isso fica difícil imaginar as revistas da Marvel e DC sem cronologia, ainda que outras editoras possam tentar fazer histórias de super-heróis sem ela.