O texto a seguir faz parte da nossa série ciclo científico, onde pesquisadores mostram artigos científicos sobre histórias em quadrinhos aplicadas em quaisquer área do conhecimento. Se você tem um texto e gostaria de nos mandar basta escrever para
SUPER- HOMENS, SUPER- MULHERES E VILÕES: O CORPO NAS HISTORIAS EM QUADRINHOS DE SUPER - HERÓIS
Alexsandro A.Oliveira
O objeto de discussão deste trabalho é o corpo do super-herói e o corpo do vilão das historias em quadrinhos. No mundo dos quadrinhos encontramos os mais variados gêneros de histórias: humos, erotismo, infantil, entre outros. No âmbito deste trabalho as histórias que nos interessam são as de super-heróis ou, como são conhecidos nos Estados Unidos, os “comics books”, o motivo para tal escolha é simples, neste gênero de história encontramos abundante material para refletirmos sobre o corpo e alguns outros aspectos a ele relacionados. Neste sentido, o que objetivamos aqui é analisar os aspectos físicos dos corpos dos super-heróis e dos vilões nas historias em quadrinhos, tentando entender que tipo de estética corporal eles afirmam, concomitante a isso fazer uma comparação entre os corpos presentes nas histórias em quadrinhos com as exigências sócio-culturais referentes ao corpo humano propriamente dito.
As histórias em quadrinhos já foi objeto de estudo nas mais variadas áreas de conhecimento. Um desses estudos foi encabeçado pelo psiquiatra alemão Fredric Wertham, o qual, no final da Segunda Guerra Mundial e inicio da Guerra Fria, aproveitando-se do clima pós-guerra que se instalou nos Estados Unidos, oportunamente fez talvez a mais dura crítica que os quadrinhos já sofreram em seu livro “Seduction of the inocents”, no qual alegava que as historias em quadrinhos levavam os jovens americanos ao homossexualismo (usando como elemento de argumentação a relação entre a dupla Batman e Robin) e diversas outras “anomalias no comportamento”. As denuncias de Wertham mobilizaram vários segmentos da sociedade americana como, por exemplo, associações de professores, mães e até mesmo grupos religiosos, todos unidos em prol de uma única causa – abolir as histórias em quadrinhos. As críticas aos “comics books” percorreram o globo, atingindo com maior ou menor impacto todos os paises nos quais os quadrinhos eram editados, diversos códigos foram criados para “depurar” o conteúdo dos quadrinhos inclusive em nosso país, no qual foi criado um “código de ética dos quadrinhos” elaborado por um grupo de editores das maiores editoras de quadrinhos no Brasil (VERGUEIRO & RAMA, 2004).
O desenvolvimento das ciências da comunicação e dos estudos culturais nas ultimas décadas do século XX fez com que as histórias em quadrinhos passassem a ter um novo status de aceitação por parte de educadores e intelectuais. Assim, sua atual condição é a de importante instrumento educacional e altamente difundido em publicações especializadas em educação, até mesmo nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) encontramos recomendações para a utilização das historias em quadrinhos em sala de aula. Ainda no campo da academia, podemos destacar várias pesquisas abordando os personagens das historias em quadrinhos e suas aventuras: história, arquitetura, religião, enfermagem, entre outras, apresentam um razoável número de publicações de teses de mestrado e doutorado utilizando as historias em quadrinhos como pano de fundo para debater os mais variados assuntos. Muitos autores destacam que nessas histórias há a presença de valores implícitos que vão muito além do valor de entretenimento. Diversas publicações que se tornaram clássicas no universo acadêmico expressão esse significado: “Para ler o Pato Donald” de Dorfman e Matellard ,”Super-homem e seus amigos do peito” de Dorfman e Manuel Jofre, “Apocalípticos e Integrados” de Umberto Eco, são exemplos de textos que vieram enriquecer o debate e ajudaram a despertar o interesse para análises mais atenta deste tipo de material. Conforme expressam ARRUDA e MARTINS ao falarem de Dorffman & Matellard:
Esses autores denunciam a ideologia subjacente aos quadrinhos, na medida em que confirmam os valores da classe dominante, escamoteiam os conflitos, transmitem uma visão deformada do trabalho e levam à passividade política. (1993: 46)
Se encarados de uma maneira mais crítica percebe-se que em suas páginas estão explicita ou implicitamente contidos todos os preconceitos, reações e imagens em relação ao corpo que a indústria cultural produz e que circulam na sociedade. O corpo retratado nas historias em quadrinhos, tanto o corpo feminino quanto o masculino, é aquele corpo idealizado pela indústria do exercício, a indústria dos remédios e cirurgias plásticas e pelos meios de comunicação: o “corpo perfeito”, “belo”, musculoso, o corpo jovem, e numa relação de alteridade, o corpo obeso, o corpo magro e o corpo idoso. As implicações sociais que essas imagens trazem consigo, traçando um paralelo entre o mundo idealizado nas páginas dos quadrinhos e o mundo real, denunciam as desigualdades e preconceitos presentes em ambas as esferas dessa alteridade de maneira crua e direta.
Partindo já para uma análise de alguns elementos presentes nos quadrinhos, um primeiro ponto que gostaríamos de ressaltar diz respeito mesmo à aparência física dos personagens. Vejamos o caso dos protagonistas, estes são graficamente distintos dos demais, tanto por seus atributos físicos quanto por suas características sociais e intelectuais. Já os personagens coadjuvantes sempre expressam características físicas e morais menos impressionantes, pois, somente assim se pode destacar o personagem principal. As historias do Superman são exemplares para essa questão, o qual, em sua identidade de Clark Kent, é um respeitado jornalista enquanto seu fiel parceiro Jimmy Olsen, após vários fracassos profissionais, continua sendo o fotógrafo que é esculachado pelo seu chefe Perry White, percebe-se que enquanto Clark Kent ascendeu socialmente através dos anos (o qual ganhou um prêmio Pullitzer nos quadrinhos), o mesmo não ocorre com seu parceiro de longa data.
Os parceiros dos heróis ou de seus alter ego sempre são motivos de chacota ou riso. Estes geralmente possuem as características que são vinculadas àquelas pessoas que fazem parte das minorias raciais ou com atributos físicos considerados desagradáveis, o exemplo notório é o de Foggy Nelson, das historias do personagem Demolidor, o qual é obeso e desajeitado, duas características que geralmente vêm associadas - é interessante perceber que esse tipo de associação também é feito na vida real . Nas historias do Batman, o famoso vigilante da sombria Gotham City, temos o desfigurado e deformado Harold que auxilia o paladino mascarado construindo aparelhos eletrônicos utilizados pelo herói na sua interminável cruzada contra o crime. Como estes, temos muitos outros exemplos nos quais os heróis e seus respectivos parceiros são claramente diferenciados – de um lado “sujeitos-comuns” com corpos fora do “padrão” que não chamam muito a atenção ou chamem a atenção de forma pejorativa, de outro, “sujeitos-heróis” com corpos fortes e perfeitos que chamem a atenção por suas qualidades admiráveis.
É clara nos quadrinhos a relação entre valores morais e imagem do corpo: o corpo forte e belo, por exemplo, é pré-requisito ou sempre estar associado a um caráter irrepreensível, por sua vez, o corpo fraco e feio vem associado a um caráter duvidoso. Confirmando esse argumento temos o resultado de uma pesquisa realizada nos Estados Unidos com crianças junto as quais foi contatada essa associação:
As silhuetas obesas atraíram uniformemente apreciações bem negativas (“trapaceiro”, ”preguiçoso”, ”sujo”, ”mau”, ”feio”, ”besta”, etc.). Já as silhuetas esguias eram uniformemente julgadas de forma positiva. (FISCHLER et al,1989, p.70)
O corpo feminino também abunda nas paginas das historias em quadrinhos, todos esbeltos, magros, com quadris estreitos e com seios fartos, o típico padrão de beleza americana inspirado em modelos famosas. Corpo que são construídos geralmente recorrendo às cirurgias plásticas e ao silicone. Neste sentido não existe heroínas “feias”, gordas. Apesar de personagens femininas não possuírem um grande numero de títulos, existem alguns, como a Mulher Maravilha e Birds of Prey entre os mais conhecidos, e mesmo em outros títulos a figura do corpo feminino é retratado exaustivamente em termos sensuais: seios enormes e amostra, pernas longas e expostas, nádegas definidas e realçadas – corpos feitos nitidamente para admiração e excitação, corpos sem “defeitos”.
Como falar de heróis sem falar de vilões? Como fazer com que o corpo forte do herói seja ainda mais evidente sem os feios, magros e velhos vilões? O corpo do vilão é sempre um corpo construído para não ser admirado, somente para citar alguns exemplos e entre os mais conhecidos temos o Rei do Crime, arquiinimigo do ágil e musculoso Demolidor, figura obesa e vil; o Dr.Octopus, um dos primeiros inimigos do grande Homem Aranha, é gordo, baixo e feio; e das páginas dos não menos conhecidos X-Men podemos citar o Blob e Mojo, duas figuras extremamente obesas; novamente usando as páginas de Batman, temos o insano Coringa, o quase esquelético palhaço do crime; e ainda podemos citar o Abutre, idoso e magro inimigo do Homem Aranha.
Enquanto os heróis são agraciados com corpos de “deuses” e com caráter moral incorruptível e justo, os vilões, personagens secundários e até mesmo os alter ego dos heróis, são o oposto, no sentido em que são feios, gordos, magros disformes e sem caráter. O que é preocupante é que tais atribuições são transpostas para o nosso dia-a-dia. A figura do herói denota tudo o que, em tese, o discurso do mercado propõe que o homem moderno venha seja - belo, bem sucedido, forte - enquanto aquelas características que são percebidas como opostas – feio, sem sucesso, fraco – são desprezadas na figura do vilão.
Quem acredita que somente a obesidade é atacada nas histórias em quadrinhos engana-se, além de figuras obesas e monstruosas a galeria de vilões se compõe ainda de vários “vovôs”, como Kaisen Gamorra, o Consertador e Dr. Silvana e de “nanicos”, como o gênio tecnológico Chip, do Quinteto Mortal e Mxplt, o duende da Quinta Dimensão.
Curiosamente quando se trata do herói a velhice é constantemente negada e não abraçada e vivida, como no caso dos seus rivais malignos. Este fato pode ser comprovado com diversos exemplos, um dos mais notáveis talvez seja o fato de que eles nunca envelhecem, o tempo nunca atingem os nossos heróis. Um exemplo clássico de como a velhice é encarada nos quadrinhos pode ser percebido nas aventuras dos heróis na revista da Sociedade da Justiça, a qual narra as aventuras de heróis “cinqüentões”. Apesar da idade avançada eles são apresentados com aparência jovial, corpos enormes e musculosos. Mas como nas histórias em quadrinhos para tudo há uma explicação, são criadas as mais incríveis situações para que os heróis não envelheçam: possuir sete vidas, conseqüentemente não envelhecer, no caso do Pantera; ficar aprisionado em um limbo no qual o tempo não passa, como no caso do Homem Hora; estar inundado de um energias misteriosas que não permitem que o Lanterna Verde envelheça. Existem outros exemplos, dentro das mais diversas situações, no qual um corpo “velho” é rejuvenescido - quase todos os heróis já morreram uma vez e ressuscitaram, e sempre que isso acontece ressurgem jovens e fortes novamente, foi o que aconteceu, por exemplo, com o Arqueiro Verde e o Hall Jordan, o segundo Lanterna Verde, que voltaram do mundo dos mortos, coincidentemente quando as historias começavam a mostrar sinais de envelhecimento nesses personagens.
Este tema nos faz lembrar uma preocupação tão presente e atualmente tão constante em nossa sociedade, qual seja, a “saúde perfeita”, vinculada ao desejo de eternizar a juventude. Desejo que fica claro nas tentativas quase que desesperadas da ciência em achar formulas para retardar ou até mesmo parar o envelhecimento e evitar a morte e nos inúmeros produtos existente para esconder as rugas e marcas de expressão – iniciativas que vão desde tintas para pintar os cabelos brancos até pesquisas que visão alterar o código genético, intervenções no sistema endócrino, chegando até à criogenia (SILVA, 2001).
Diante do que expomos acima não podemos deixar de ressaltar que tais histórias não podem ser encaradas como “inofensivas”, elas podem exercer, e em alguns casos exercem, o papel de mantenedoras de determinadas imagens. Este meio de comunicação de massa, que vem crescendo dia-a-dia no mundo inteiro, com tiragens cada vez maiores, atingindo um número cada vez maior de consumidores, necessita ser encarado com certas reservas, sobretudo nos ambientes escolares. Acreditamos que se faz necessário, no caso de professores, um contato mais constante com este tipo de literatura, preocupando-se em conhecer o que representa, o que fomenta e a quem ou ao que serve - um exemplo deste fato é a constatação de que todos aqueles preconceitos referentes ao corpo existente na sociedade estão presentes e são reforçados, explicita ou implicitamente, nas paginas dos “comics”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, Maria Lucia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 2ª edição. São Paulo: Moderna, 1993.
BARBOSA, Claudio L. de Alvarenga. Educação Física Escolar: da alienação a libertação. São Paulo: Vozes, 1997.
COURTINE, Jean-Jacques. Os Stakhanovistas do narcisismo: body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. (org). Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
FISCHLER, Claude. Obeso Benigno, Obeso Maligno. In: Sant’Anna, Denise Bernuzzi. Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
RAMA, Ângela & VERGUEIRO, Waldomiro (orgs). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
SANT,ANNA, Denise Bernuzzi (Org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
SIMÕES, Antonio Carlos (org). Mulher e esporte. São Paulo: Manole, 2003.