Entrevista: Marcelo Campos
Entrevista com Marcelo Campos
Pop: Começando pelo básico: Como você aprendeu a desenhar?
Marcelo: Eu sou de uma cidade pequena do Mato Grosso do Sul, Três Lagoas, e eu nasci em uma família que gosta da arte. Sou o mais novo e a família pelo lado da minha mãe é muito ligada em arte, música, pintura. Minha mãe e meu avô pintavam, meu avô era baterista e quando nasci, meus irmãos já tocavam um instrumento; o irmão mais próximo a mim desenhava, já pintava, já gostava de história em quadrinhos. Meu irmão mais velho gostava de HQs, minha mãe também; ela lia Fantasma, Mandrake, Flash Gordon. Então eu já nasci meio que nessa área. Lia muito, literatura, livros de arte. Eu não lembro exatamente quanto, mas eu sempre desenhei. Era uma coisa natural para mim ver quadrinhos, cinema, música, literatura. Sempre foram coisas presentes na vida.
P: E você não chegou a ter um aprendizado formal?
M: Eu cheguei; quando eu tinha 17 anos vim para São Paulo, para fazer a Pan Americana (uma das principais escolas de Arte e Design de São Paulo). Não exatamente por uma vontade minha. Todo mundo falava que eu desenhava bem e eu não sabia fazer outra coisa. Daí eu vim fazer esse curso, porque ... sei lá, vai que as pessoas estavam certas. Mas eu fiz o curso por seis meses, acho que nem isso, e por umas circunstâncias eu deixei o curso, parei de desenhar e fui mais para música. Fui para o Rio de Janeiro, meu irmão morava lá. A gente montou uma banda e foi vivendo assim.
Profissionalmente o que aconteceu é que eu vi uma revista brasileira de uma editora chamada Maciota e dizia: "A gente está procurando novos desenhistas, pessoal que escreve, faz histórias em quadrinhos; a gente paga". Meu irmão ficou me enchendo o saco: "Vai, Marcelo, você desenha legal, a gente faz uma história juntos". A gente fez uma história, mandamos, os caras pagaram e foi indo assim, a gente fazia, mandava e recebia. Então eu conversei com um amigo e ele falou que estavam rolando uns encontros com fãs de quadrinhos em São Paulo, no Centro Cultural, com o Jotapê (Martins, que na época trabalhava na Editora Abril). Eu não queria, porque estava fazendo outras coisas no Rio, tinha a banda, mas eu vim, conheci o Jotapê, ele adorou os desenhos e me mandou ir na Abril. Eu fui lá, os caras gostaram e me ofereceram um emprego. Como eu ia ganhar bem, eu saí do Rio e vim para cá.
Foi aí que eu vi que poderia ser uma profissão, uma fonte de renda, que eu poderia viver dentro dessa profissão das artes gráficas. Eu não imaginava e nem sonhava com isso, não era uma coisa que eu desejava... ser desenhista; foi acontecendo. Trabalhei na Abril, saí de lá e fui trabalhar com desenho animado. Tinha uma produtora aqui que trabalhava para a Hanna-Barbera, fazia Smurffs, Snorks. Eu fui trabalhar com eles, fiquei um pouco lá e saí. Fiquei trabalhando para pequenos estúdios que faziam quadrinhos para a Globo e para a Abril: Faustão, Xuxa, Angélica, Sérgio Malandro, He-Man, Brave Star, vários desenhos amimados. Fiz caixinhas de Comandos em Ação, enfeites para festa, revista de passatempos, ilustrações, até que a Abril me chamou de volta. Fiquei lá como editor de arte por um tempo, não gostei. Aí surgiu o lance em 89 de trabalhar para o mercado americano. Já existia o Art & Comics e o Hélcio (de Carvalho) perguntou se eu queria tentar, fiz umas amostras, mandei e a Malibu gostou, me passou um contrato de dois anos e meio. Daí eu fiquei trabalhando para eles, de lá foi para a Marvel, DC, Dark Horse, DC de novo e foi isso.
P: Você não teve um momento de decidir que queria trabalhar com quadrinhos? As coisas foram fluindo.
M: Não. Não sei como aconteceu. Eu gostava de quadrinhos, lia, tinha minhas revistas, comprava pra caramba. Lia de tudo, Marvel, DC, quadrinho europeu, underground americano, muito Crumb, Creprax, gostava de Grilo, tinha as Heavy Metal. Super-heróis eu não lia muito. Tinham alguns desenhistas de quem eu gostava. Eu gostava demais do Jack Kirby, ainda gosto, acho ele genial e na década de 80 teve uns caras que para mim foram importantes: Howard Chaykin, Frank Miller, Walt Simonson. Eu era doido pelo desenho do Walt Simonson, um dos melhores. Sempre em uma linha não muito realista. Mesmo em quadrinhos antigos eu gostava de uma coisa como Dick Tracy, do Chester Gold mesmo. Gosto de Popey, Brucutu, Tintin, Asterix. Essa linha meio cartum.
P: Você entrou nos quadrinhos americanos em 89, um pouco antes da mal fadada década de 90 com a Image e tudo mais. O que você acha dessa virada nos quadrinhos americanos?
M: Eu sou meio suspeito para falar, mas eu acho que foi uma escorregada muito grande na indústria dos quadrinhos. Foi para um nível técnico, gráfico, superior. Papel melhor, cor por computador. Mas ao mesmo tempo prejudicou porque o custo da revista aumentou. Teve uma série de decisões editoriais que eu acho que foram erradas, como tornar a chegada do material ao leitor uma coisa mais de gueto; essas Comic Book Shops, eu achei que foram uma burrice extrema. Quadrinho é um troço popular. Tem que ter o quadrinho mais elitista, sempre teve, mas também tem que ter o quadrinho que chegue com facilidade, muito barato, com custo gráfico e de distribuição barato, alternativo, sei lá... popular. Não ficar nesse meio termo.
P: Você acha que aqui no Brasil estamos caminhando para isso?
M: Eu acho que o mundo todo está caminhando para isso. Sei lá, parece que lá nos EUA eles estão voltando a vender as revistas mensais em bancas, não estou muito informado. Eu não sei, eu acho bacana ter essa coisa popular. Eu acho legal chegar na banca e encontrar uma revista brasileira, preto-e-branco, por um real, as pessoas estão publicando.
P: Os que você acha que aconteceu com as tiragens que antes eram de 120 mil e hoje muitas vezes não passam das 20 mil?
M: Eu trabalhei em uma época na Abril em que a gente tinha 300 mil de tiragem. Em 86, quando eu trabalhei a primeira vez lá, vendia muito. Eu realmente não sei se isso aconteceu, se realmente as outras mídias foram vencendo a competição. Eu vejo pelo meu filho, ele não consome histórias em quadrinhos, mas ele tem video-games espetaculares, com uns gráficos que você olha e fala: "Pra que eu vou ler uma história em quadrinhos? Olha isso!".
Mas eu acho que teve um erro, eu não sei julgar. Eu acho que teve um erro da Abril, crasso, que eu acho que eram os anúncios. A Abril só fazia anúncios internos, de produtos deles. Na linha de quadrinhos ainda tinha alguma coisa do Nescau, da Gulliver, Todynho, mas isso foi bem no comecinho e depois sumiu. Então na revista do Homem-Aranha tinha anúncio só do ... sei lá, X-Men. Diferente dos EUA, que vende as páginas para video-games, tv.
P: E a linha Premium da Abril?
M: Ali eu acho que foi uma avaliação que a Abril fez de ver que o público tinha envelhecido. Não estava se formando um público novo então eles resolveram investir nesse público mais velho. Foi uma avaliação que eles fizeram. Muito caro, para um público mais adulto que trabalha e tem seu próprio dinheiro. Não sei se o tiro foi pela culatra ou se a Abril não se interessava mais pelo gênero. Talvez tenha chegado a um ponto em que as vendas para eles não faziam mais sentido.
P: Quando você faz arte-final é um trabalho extremamente detalhado, mas quando você faz os seus desenhos seu traço é bem estilizado. Como é essa diferença para você?
M: Quando eu fiz a arte-final com o Ivan (Reis) gostei pelo desafio de não parecer eu mesmo. A minha busca como desenhista, se é que eu tenho uma, acho que é quanto mais simples, quanto menos você faz, mais você tem que desenhar bem. Porque quanto menos informação gráfica você der, mais você tem que saber resolver aquilo melhor. Então como desenhista eu estou sempre limpando mais, vendo se eu preciso realmente desta ou daquela linha. Sempre que eu vejo o meu trabalho eu penso: "Aqui eu exagerei, fiz três linhas podia ter sido duas". Eu vou tentando eliminar até chegar a um produto muito gráfico, iconográfico. A tentativa que eu quero é chegar um dia e fazer um desenho bem iconográfico. Com duas ou três linhas tentar passar tudo.
Eu não sei quem foi que disse que escrever é a arte de cortar palavras (NOTA: a frase é do poeta Carlos Drummond de Andrade), eu acho que desenho é a mesma coisa. A gente teve um evento aqui (na Quanta), o Quanta Produção, vários artista vieram para cá e um deles foi o Orlando. A gente estava conversando enquanto ele desenhava e eu pensava: "Meu Deus do Céu, que coisa linda". Às vezes ele estava fazendo o movimento de uma mão e faz três dedos só, mas você sente que tem os cinco. Eles não estão desenhados, mas você sabe que estão lá. Eu acho que isso é onde eu queria chegar...
P: Poder de síntese
M: Exatamente. Eu acho que é uma opção. Não é que fazer detalhado é errado, é um caminho. Eu olho uma coisa simples, expressiva, é o simbolismo da imagem, não é os cinco dedos da mão mas é uma coisa representada.
Como o trabalho do Ivan é um trabalho muito detalhado, realista, a mão é a mão, com todas as dobrinhas, as rachaduras nas unhas. Eu achei que seria muito interessante ter esse aprendizado, foi um exercício. Foi difícil, cada quadro ali era complicadíssimo, porque o traço dele é todo redondinho, enquanto o meu é anguloso, e ele faz aqueles cabelos enormes. Tinha aquelas histórias da Action Comics onde apareciam a Mulher Maravilha e eu ligava para ele: "Ivan... Ivan... cabelo, bicho... vai estudar o Milo Manara, ele faz dois traços e o cabelo fica lindo". E ele ria. Eu mandei uma vez um e-mail para o Ed Berganza, que era o editor da revista, e falei para a gente fazer um visual novo da Mulher Maravilha, rapar o cabelo, ficar carequinha, moderna. Aí ele me mandou ...
Foi uma experiência bacana. Mas uma coisa muito mecânica. O trabalho de arte-finalista é muito mecânico. Você está ali para melhorar, embelezar o trabalho do desenhista. E eu sentia isso, eu acho o desenho do Ivan espetacular nessa proposta dele, do que ele gosta de fazer, mas foi muito cansativo. Eu cheguei a passar doze horas em uma página. E cuidando da escola e tudo mais não dava, então no carnaval eu desisti. Eles até quiseram passar um quadrinho da Liga da Justiça Animated, mas eu não quis pegar porque eu tenho um estilo muito parecido com o do Bruce Timm, mas eu não queria ficar conhecido como o cara que faz igual ao Bruce Timm, porque não é verdade. Eu já tinha esse estilo antes do desenho do Batman. E agora eu estou querendo fazer outras coisas, não sei exatamente o quê, mas não é quadrinhos.
P: E dar aulas? Você gosta?
M: Eu gosto, mas atualmente também não está dando tempo. Talvez eu assuma a turma do Renatinho (Renato Guedes), porque ele vai assumir o curso especial do Art & Comics, um curso especializado para super-heróis em que os melhores alunos vão ser agenciados. São doze alunos só, foi uma seleção bem forte. E eu acho que eu vou assumir essa turma que ele vai deixar.
P: Você disse que passa nas salas e conversa com os alunos.
M: Sempre, eu gosto pra caramba disso. De bater-papo, brincar. Eu gosto de deixar o clima na escola bacana, de amizade, de soltura. Passar uma calma, calma que você vai aprender, não precisa se estressar. Eu entro brinco, é uma zona. É muito gostoso isso. Se querem fazer uma avaliação do trabalho eu atendo. Agora temos o Quantoon, que é um espaço para o cara fazer o trabalho do jeito que ele quiser.
P: O Quantoon é uma prova de que você tem um excelente material sendo produzido aqui. Você não tem uma idéia de ter uma editora? Quanta Editora?
M: Não, por enquanto eu não penso nisso não. Eu acho que a intenção é mostrar o trabalho dos garotos. Editora implica em uma série de problemas, papel, distribuição, gráfica. Com editora você tem que pensar em muito mais coisa, ter uma linha editorial fechada, dá muito mais trabalho. Por enquanto eu não penso não. Só vou colocando o trabalho dos garotos ali, tem umas coisas muito bacanas, um pessoal muito bom.